sábado, 14 de novembro de 2009

Tentar descomplicar só complica


Usava um sapato meio masculinizado, na cor bege com cadarços judiados, uma calça jeans de tecido um pouco mais leve que o normal, era meio largo porque era de sua mãe, e uma camiseta amarelo vibrante, desenhado ao lado esquerdo o logo do mercado em que trabalhava. Assim Enya ia mais um dia ao seu trabalho, não muito feliz de fato, mas ela sabia que ali não ficaria por muito tempo, pois tinha apenas dezesseis anos. Entrava para o início do expediente séria como sempre, era tímida e desconfiada. Ia direto em direção àquela máquina monstrusa e velha onde batia o seu cartão ponto. Procurava o seu nome entre os cinqüenta cartões que permaneciam sempre fora de ordem. Enya Cardoso, sim era esse, o cartão de número dezoito. O relógio marcava catorze horas, hora de começar o trabalho.


Enya não fazia parte de nenhum estereótipo da moda, era magra, estatura mediana, pele trigueira, cabelos compridos, disformes, num tom de chocolate, olhos de avelã. Era a única filha de Cássia e Éber. Veio ao mundo sem ser planejada, fruto de um amor adolescente. Não tinha muitos amigos, na escola não era nenhuma CDF, mas sempre foi aprovada com boas notas. Tinha preocupações demais para uma menina de sua idade, sua mãe ficava semanas sem aparecer em casa e, seu pai, trabalhava à noite, mal se falavam. Discussões, brigas e desentenimentos eram rotineiros em sua casa.

Certa vez, Enya foi convidada por sua tia Rosane para passar o fim de semana na praia. Rosane foi com César, seu noivo e levaram também um amigo do casal. O fim de semana foi tranqüilo, sem praia pois não fez sol. A timidez de Enya não a deixava muito à vontade, a praia ficou lotada com os amigos de sua tia. Ao voltar para casa, foi dar um abraço em sua mãe, viu-a no quarto assistindo TV, sentada na cama.

- Oi mãe. Cumprimentou Enya.
- Que tu qué guria? Perguntou sua mãe.
- Nada, só para você ver que eu cheguei, mãe, e está tudo bem.
- Tudo bem? Tu tem a cara de pau de me dizer que tá tudo bem depois de um final de semana com um desconhecido na praia? Ora essa...
- Mãe, que é isso? Eu estava com a tia Rosane.
- Ah é? Tia Rosane? E o cara com quem você dormiu?
- Como assim, mãe? Não estou entendendo nada...
- Não se faça de mosca morta, Enya. Se a tua menstruação não vir no próximo mês... Ah! Eu enfio um ferro entre as tuas pernas e tu vai ver o que é bom... Te prepara guria!
Aos prantos, Enya foi para o seu quarto sem entender nada do que sua mãe dissera. Quando o assunto era relacinamentos, ela sempre foi a mais atrasada de suas amigas. Nem selinho não havia experimentado ainda, agora, grávida? Como assim?
- Eu não fiz nada! Minha mãe está louca! Pensava ela, sentada no chão de seu quarto úmido, escuro, gélido e sem janela, com as mãos em volta de suas pernas flexionadas, as costas contra a porta, para que ninguém entrasse e a cabeça baixa, ensopando a calça com suas lágrimas salgadas.

Passaram-se três meses e nada de sua menstruação, grávida é certo que não poderia estar, pois ainda era virgem e nunca se relacionara com ninguém. Mas como sua mãe entenderia? Enya fazia um corte no dedão do pé e sujava o absorvente com sangue para mostrar a sua mãe, com medo de que ela pudesse machucá-la sem motivo algum. O fato é que a moça estava tão apavorada com tais atitudes de Cássia que isso a prejudicou psicologicamente e acabou comprometendo o seu ciclo menstrual. Depois de um certo tempo tudo voltou ao normal, mas Cássia nunca se desculpou.

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Aos dezoito anos, a moça trigueira se viu só. Sua mãe saiu de casa e foi buscar a felicidade com um caminhoneiro. Seu pai conheceu uma cabeleireira, por quem se apaixonou e foi tentar uma vida conjugal. Por um tempo, Enya morou com seu pai e sua madrasta, porém o relacionamento dos três era muito difícil, então Éber decidiu cortar os laços e morar sozinho com sua nova paixão. Ela ficou com a casa, contas, sozinha e desamparada.

Em uma noite de verão, calor e céu estrelado, Enya terminou o seu expediente no mercado, bateu o cartão ponto às 20h30min. Era uma sexta-feira, saiu do mercado com umas sacolas de frutas, leites, biscoitos e algumas verduras, algo para se alimentar à noite. Ao atravessar a rua, notou um carro estacionado, era grande, preto, os vidros tão escuros que não se via quem ou quantos estavam lá dentro, ela sentiu medo e correu para o ponto de ônibus, afinal, era noite e não havia ninguém que pudesse socorrê-la se algo ruim acontecesse.
Após subir no ônibus, sentiu-se aliviada. Ela descia uns 200 metros de casa. Quando desceu, percebeu que o mesmo carro que estava estacionado próximo ao mercado estava agora na esquina de sua casa, sem pensar duas vezes, disparou correndo, com um pavor tão grande que seu coração acelerou. Assim que entrou em casa, o telefone tocou. Atender ou não? Eis a questão. Ela atendeu.

- Oi, Enya? Falou uma voz masculina e doce.
- Sim, sou eu, quem fala?
- É o Isaac, eu trabalho para o mercado, sou do setor de Artes.
Ela ouvia com atenção.
- Sim, Isaac, fale.
- Bom, eu quero te conhecer, hoje tem show do Maskavo, quer ir?
Ela ficou em dúvida, afinal não conhecia direito esse Isaac, via-o às vezes ao longe, quando ele aparecia no mercado com as faixas das promoções que ele mesmo pintava. Achava graça quando suas colegas ficavam eufóricas assim que ele aparecia, ele era lindo, sim, ela não podia negar.

- Sim, eu quero. Você me pega em casa? A que horas?
- Às nove, tá bom pra você?
- Ótimo. Até mais então.
- Até.

Ela não sabia ao certo o que sentia, medo talvez, mas o frio em sua barriga era até que excitante. Like butterflies inside. Arrumou-se. Como quase nunca saía para festas, foi difícil encontrar uma roupa adequada. Colocou um jeans escuro, uma blusa preta, e uma bota que sua mãe havia esquecido. Às nove em ponto o interfone tocou, era Issac. Ele a buscou com um casal de amigos. Foram ao show. No caminho, ela estava nervosa, não ficava muito à vontade com desconhecidos, e era isso o que eles eram, mas ela queria arriscar. Desceram no estacionamento, ele chupava uma bala de menta. Mais próximos, ela ficou a reparar toda a beleza de Isaac, ele era moreno, alto, cabelos perfeitos e bem alinhados, olhos encantadores, cor de mel, uma boca linda, dentes perfeitos, o seu sorriso a fazia estremecer. É certo que ela não gostou muito do que ele vestia, uma calça de abrigo verde musgo, um suéter cinza escuro e um tênis estranho. Nem tudo é perfeito, pensou ela.

Caminhando em direção à entrada, ele envolveu-a em seus braços, segurando forte em sua cintura, roubou-lhe um beijo. Seus lábios quentes e carnudos fizeram-na sentir-se nas nuvens. Entraram para o show, ao som dos versos: "o teu olhar não me deixa mentir, só espero o teu amor". Conversaram e puderam se conhecer melhor. Apaixonaram-se e, a partir de então, iniciaram o namoro.

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- Enya, podemos conversar no horário de almoço? Perguntou Isaac ao telefone.
- Sim claro, no lugar de sempre.
Fazia cinco meses de namoro. Ela não suspeitou de nada quando Isaac a chamou para uma conversa, mas o fim era iminente.
- Oi querido. Aproximou-se para beijá-lo, mas ele não retribuiu.
- Enya, preciso falar algo e quero que entenda que é para que não se magoe.
- Como assim? Ela tinha dificuldade para entender certas coisas.
- Olha, você tem seus problemas e eu não quero me envolver, acho melhor...
- Tá bom, já entendi. Ela percebeu que era o fim. - Era só o que tinha para me falar? Já acabou? Tentando ser forte e não demonstrar tamanha tristeza, segurou o choro. - Então tá, tchau. Não venha me procurar. Disse num tom severo.
- Você não tem nada para me dizer?
- Tchau. Disse grosseira. Virou as costas e foi embora sem olhar para trás.

Caminhando sozinha, ao perceber que estava longe, distante o bastante para que ele não a visse, soltou o choro que estava engasgado. Não sabia o que fazer, ela o amava e havia sido iludida. Desorientada entrou em uma igreja que havia pelo caminho, pôs-se a chorar.
Passou-se um tempo e ele serviu como um grande amigo para Enya. Bendito tempo, tem o dom de cicatrizar as mágoas.
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Enya sentia saudade de sua mãe, queria um colo, carinho, conselhos que só mãe sabe dar e que muitos não aceitam, mas gostam de ouvir. Tinha algumas amigas, meio loucas, é verdade, mas eram amigas. Elas as amava, mesmo não demonstrando o seu afeto, suas amigas entendiam. A moça dos olhos de amêndoas tinha seus admiradores, mas nunca se interessou por nenhum.
Numa noite qualquer de primavera, Enya chegou do cursinho, ela nunca largou seus estudos. Cansada, tomou um banho demorado, deixava a água quente massagear suas costas enquanto pensava na vida. Pensou muito. Assim que saiu do banho, o telefone tocou. Era Lilian, sua amiga e colega do cursinho pré-vestibular.

- Oi querida, te arruma, vamos dar uma voltinha. Ordenava Lilian ao telefone.
- A-a-hã? Ta-tá...
- Daqui meia hora passamos aí para te pegar.
- Passamos? Como assim? Quem vem com você? Lili? Lili? Já havia desligado.
Enya esperou no portão. Viu se aproximar um Gol branco, era sua amiga e dois rapazes. Desceram todos do carro, Lili abraçou-a.

- Oi amiga, vamos fazer um lanche a bater um papinho em algum lugar legal, você está precisando... Dizia Lilian animada.

Enquanto ouvia, sem prestar muita atenção no que sua amiga dizia, ela observava um dos rapazes que havia descido do carro e estava de costas conversando com outro rapaz. Ele era cabeludo, vestia bermuda surfista e uma camiseta vermelha, não era nem magro, nem gordo, tinha um corpo atraente, tatuagem na perna esquerda.

- Esses são meus amigos, Dani e Bruno. Apresentou Lilian.

Bruno virou-se, quebrou-se o encanto. Ele era estranho, dentes disformes, amarelos e dispostos um sobre o outro, como se não tivesse lugar na boca para tantos dentes. O rosto era coberto de espinhas. Não eram qualquer espinhas, eram enormes e firmes, como picadas de insetos. Seus cabelos eram volumosos, como se ele estivesse usando um capacete. Enya sentiu uma enorme vontade de rir, mas segurou-se por educação. Dani era um gordinho simpático, usava óculos de grau e tinha cabelos e barba ruivos. A noite foi agradável, conheceram-se e voltaram para casa.
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Era outubro, mês em que completaria dezenove anos. Sozinha, continuava a sua rotina: da casa para o trabalho, do trabalho para o cursinho e do cursinho para casa. Numa tarde, véspera de seu aniversário, ela viu entrar no mercado um motoboy com um arranjo de flores, ele parou, tirou o cartão da bolsa e perguntou:
- Enya? Quem é Enya?
- O quê? Sou eu. Respondeu incrédula.
- É para você, assine aqui, por favor?
- Sim, claro.

Enya nunca havia ganho flores, era a primeira vez, nem imaginava quem poderia ter lhe enviado, abriu o cartão com pressa, curiosa. Foi direto para a assinatura: Bruno. Zangou-se.
- Só quem não queremos lembra da gente... Afirmou engasgada.
- Ai, Enya, não seja tão rude, coitado do guri, ele gosta e ti. Replicou sua colega.
- É, fazer o quê?!

Algumas semanas se passaram. Enya resolveu deixar de lado as aparências e tentar a sorte com Bruno. Aceitou seu pedido de namoro. Apesar de feio, era um rapaz legal, divertido e engraçado. Ela gostava disso. Viajavam de moto, cantavam Reggae. Ele a amava. Ela tentava amá-lo, mas seu sentimento não passava de amizade e gratidão pela companhia. Namoraram por um tempo, mas ela não conseguia mais, cansou de tentar e resolveu terminar. Ele sofreu no início, mas ela sabia que ia passar.

Enya sentiu-se mal por ter causado tanto sofrimento a Bruno. Pior ainda por ter enganado a si mesma, por não entender seu próprio sentimento, por ser tão carente. Mas a vida é assim, quem entende?

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A moça morena, agora com 21 anos, já não trabalhava mais naquele mercado. Especializou-se em um curso direcionado para a indústria e conseguiu uma vaga em uma fábrica de faróis e lanternas automotivos, era inspetora de qualidade. Simultaneamente passou no vestibular e, sem saber ao certo o motivo pelo qual escolheu o curso, optou por Letras.

Tudo ia bem, o emprego, apesar de acordar todo os dias às quatro horas da manhã para iniciar sua jornada laboral; o curso, tinha aulas três dias na semana, ela achou melhor assim, pois a faculdade era particular e não conseguia pagar todas as disciplinas. Enya não queria nenhum relacionamento agora, já bastava os que haviam passado. Planejava sua carreira, cursava também Inglês e Libras, guardava 10% de seu salário para realizar o sonho de viajar e fazer um intercâmbio.


Havia um senhor que trabalhava na mesma fábrica, seu Ivo. Era um senhor solitário, com 54 anos, não tinha filhos e morava sozinho. Trabalhava no setor de injeção de plástico, onde Enya ia a cada hora fazer a inspeção de qualidade. Pegava um peça recém injetada, olhava minuciosamente à procura de trincas, rebarbas, bolhas ou qualquer outro defeito que estivesse fora dos padrões exigidos para que o produto fosse de boa qualidade. Não encontrando nada, a moça anotava em sua pasta o número da injetora, o produto que estava sendo injetado, o operador da máquina, seu parecer. Ao passar dos dias, criou-se uma amizade entre seu Ivo e Enya, eles contavam piadas, davam risadas, tomavam café juntos no intervalo da manhã. Ela o tinha como um pai, mas nunca chegou a revelar tamanho carinho que sentia, continuava envergonhada como sempre.


Em mais dia normal, indo almoçar com suas colegas de trabalho, reparou em um homem que estava na lancheria perto do restaurante onde almoçava. Não conseguia tirar os olhos dele, era lindo, pele clara, cabelos em um corte bem definido, com um pequeno topete, olhos grandes, de um azul celeste, era alto, seu porte físico chamava a atenção. Usava calça jeans desbotada, uma camisa branca de botões e um sapatênis bege. Um príncipe, assim ela o definiu. Ele comia torrada e bebia Coca-Cola, olhava para o horizonte, não se fixava em nada, muito menos em Enya que implorava por um olhar. Os dias seguintes foram assim, ela ia almoçar pensando em ver mais uma vez aquele ser de uma beleza fora do normal.


Colheu algumas informações, Noah era o nome dele. Trabalhava em uma empresa terceirizada, cuidava das máquinas de café das fábricas. Ela decidiu arriscar, mais uma vez... Ah! Só um encontro! Pensava. Pediu para a moça da lanchonete conseguir o telefone dele. Conseguiu. Entre telefonemas e torpedos, conheceram-se. Não era casado, ainda bem. Enya se policiava para ser sempre correta. Não bebia, não fumava, não se envolvia com ninguém comprometido e nem com colegas de trabalho. Tinha medo de tudo. Essa foi a primeira vez que tomou iniciativa.


Marcaram um encontro no feriado de 2 de novembro, data não tão propícia, pois era finados. Era uma tarde quente. Foram a um bar perto do Parcão de sua cidade, foi ele quem escolheu o lugar. Ele pediu uma cerveja; ela, água sem gás.


- Olha gata, só para começar: não tenho namorada, não sou casado e nem estou à procura. Se quiser assim, tudo bem. Afirmava ele num tom arrogante.
- Eu também não. Disse Enya sem jeito.

Ela observava-o com atenção, ele era uma pessoa que, tirando a beleza, nunca chamou a atenção dela. Parecia ser um cara fútil, filhinho da mamãe, sem nenhuma bagagem cultural, não tinha planos, gastava todo o dinheiro em seu carro chamativo, mulher e cerveja. Pensava:
- O que estou fazendo aqui? Faço tudo errado. Quero ir embora... E esse cara? Acha que é o centro do mundo?
Levantou-se para ir embora quando ele perguntou:
- Vamos conversar em um lugar mais reservado, gatinha?
Nessa ela não ia cair. Deixou-o ali e foi embora.

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Noah não parava de ligar e enviar torpedos. Ela resolveu não ser tão pessimista, afinal, criara uma imagem do moço que nem sabia se era realmente assim. Ficaram um tempo juntos, ele a excitava, era bom sedutor. Conheceu a família dele. Apegou-se. Num ato de loucura e sem medir as conseqüências, Enya aceitou o convite e foi morar com ele e sua família. Por força do destino, casaram-se.
Ela ajudou-o a terminar os estudos e a conseguir um emprego melhor. Na verdade, nos quesitos estudos e responsabilidade ela era muito mais evoluída. Ele sempre dependeu de alguém, isso a deixava furiosa, pois ele era como uma âncora, e ela precisava era de um gacho... Porém, pelo fato de morar com a família dele, acabou sendo submissa. Mais uma vez mudou de emprego, trancou a faculdade por falta de dinheiro, desistiu do sonho de viajar (temporariamente, é claro!).
Com algum tempo juntos, ela sentiu-se feliz em estar com Noah e sua família, conseguiu preencher um pouco o vazio que seus pais haviam deixado. Iam à praia nas férias, passavam sempre Natal e Reveillón juntos. Tinham uma vida de casal, um pouco enfadonha, talvez...
Conquistaram o sonho de adquirirem um apartamento, com muita ajuda dos pais dele, claro. Tudo certo agora? Achava que sim. Porém algo sempre acompanhou a vida dos dois: o individualismo. Ela gostava de coisas que ele odivava e vice-versa.

Ela: Rock, Pop, MPB, Reggae.
Ele: Pagode.
Ela: Legião Urbana, Beatles, Nenhum de Nós, Nirvana, Cássia Eller, Acústicos e Valvulados, Papas da Língua, Extreme, Jason Mraz, uma infinidade...
Ele: Zeca Pagodinho, Revelação, Bruno e Marrone, só.
Ela: Música, arte, cinema, festas, Happy Hour, esportes, passeio no parque, dança, programas culturais...
Ele: TV, cerveja com os amigos, almoço e jantar na casa da mãe.
Ela: Dança no meio da sala, liga o som alto, canta no chuveiro, faz careta no espelho.
Ele: Pára com isso! Desliga esse som! Que gritaria é essa? Assim você fica horrível!
Ela: Eu ainda vou ao Planeta Atlântida!
Ele: Odeio tumulto!
Ela: Por favor, não maltrate os animais!
Ele: Abre a janela que eu vou matar esse passarinho...
Ela: Eu ainda vou conhecer o Canadá e publicar um livro.
Ele: Ai, para você tudo parece tão fácil... A vida não é bem assim, viu?
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Enya gostava de Noah, mesmo percebendo o enorme abismo entre os dois, estava disposta a fazer com que desse certo, afinal, todos os casais têm suas diferenças. Ela procurava aceitar os defeitos dele, pois sabia perfeitamente que também tinha os seus, e muitos. Assim ia levando a sua vidinha...
Numa noite muito fria, do tradicional inverno gaúcho, ela arrumou sua parte da cama, gostava de muitas cobertas, colocou suas meias coloridas, pois em noites frias não conseguia dormir sem meias. Resolveu dormir cedo, por volta das nove horas. Entrou num sono profundo, de repente, viu-se num lugar lindo, repleto de flores, um gramado perfeito, de um verde vivo e tão parelho que mais parecia um carpete. Ela estava sentada no gramado, pés descalços, pernas flexionadas, uma das mãos segurava suas pernas, a outra possuía uma cuia de chimarrão, a garrafa térmica estava ao seu lado. Observava o sol se pondo, mergulhando no rio a sua frente. Sentia-se bem.
-Oi guria! Ouviu uma voz sedutora vindo a sua direita. Olhou. Era um rapaz bonito, de estilo próprio, moreno de pele clara, cabelos cacheados, molhados com gel e desalinhados, olhos negros e misteriosos, sorriso hipnotizador.
- Oi! Ela respondeu simpática. Quer uma cuia?
- Bah, com certeza!

Ela o serviu. Ele estendeu a mão para segurar a cuia e Enya fixou seus olhos naqueles braços robustos, de músculos firmes e delineados, aliás, todo o seu corpo era bem delineado, ela sentiu-se atraída. Lado a lado eles apreciavam o crepúsculo, em silêncio.
- Qual o seu nome? Enya quebrava o silêncio.
- Gabriel.
- Hum, lindo nome.
- Obrigada, Enya.
- Como você sabe o meu?
- Eu te conheço há muito tempo, sei tudo sobre você.
- Como assim?
- Com o tempo você vai entender.
Enya não fez questão de questionar.
- Você está bem? Perguntou Gabriel.
- Tô, tomando um chimarrão, curtindo a paisagem... Por que não estaria?
- Não sei, se estivesse mesmo, talvez só responderia: tô.
- Tô. Replicou ela.
- Por que você está sozinha?
- Estava esperando que alguém aparecesse para conversar.
- Eu apareci.
- É, você também está sozinho.
- Não, não mais, agora estou com uma morena linda que encontrei olhando o horizonte, talvez me procurando...
- Hi, tá se achando.
- É só uma brincadeira, na verdade eu tô me sentindo o ser mais carente do mundo.
- Então somos dois.
- Ei, querida, mas notei sua aliança na mão esquerda, você é casada.
- Sim, sou, mas muitas casadas também se sentem carentes.
- Hum, acho que tô entendendo... Quer ouvir música?
- Claro! Adoooro! Mas como?
- Eu trouxe meu MP3, divido um fone contigo. Conhece Carla Bruni?
- Hum, não lembro muito bem... Ah, sei, vi uma reportagem na TV, ela é casada com o presidente da França, Nicolas Sarkozy, não é mesmo?
- Não sei muito sobre a vida dela, só curto as músicas.
- Legal, francês é sedutor.
- Que francês te seduziu?
- O idioma é sedutor.
- Eu entendi, tô só brincando, sou meio palhaço.
- Ha, ha, ha. Eu gosto disso.

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- Enya, acorda! Já são seis horas, você vai se atrasar. O dia amanhecera e tudo não passou de um sonho, um sonho que parecia ser real. Ela contava as horas para voltar para casa e sonhar novamente. Sonhar com Gabriel

- Sabia que você estaria novamente aqui. Afirmou Gabriel.
- É, acho que estou me viciando em você.
- Pode viciar, não causo mal nenhum.
- Eu sei, você me faz sentir muito bem.
- Você também me faz sentir assim. Os dois se olharam. Sorriram.
- O que você faz? Perguntou curiosa.
- Eu viajo, estudo culturas.
- Hum, interessante. E o que trouxe nessa mala?
- Meu violão.
- Não acredito, você toca? Eu amo violão, quero muito aprender a tocar.
- Eu toco e também componho algumas músicas. Quer ouvir?
- Claro! Demais!!!
Gabriel se ajeitou, tocou docemente e cantou para ela uma linda canção, olhando-a apaixonadamente nos olhos. Enya admirava-o. Sem perceber, uma lágrima rolou em seu rosto.

- Que lindo! Por que você parou?
- Se for para ver você chorar, não toco mais.
- Chorar? Não estou triste. É sentimento. Você tocou meu coração. Não sabe o quanto eu sonhei com isso... Assim serei tua fã, sabia?
- Ah, que isso? Não é nada demais, é simples.
- Eu amo as coisas simples.

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Noites seguiram e Gabriel sempre entrava em seus sonhos. Ele era inteligentíssimo, tinha várias teorias sobre amor, vida conjugal, comportamento social. Ele ensinou-a muitas coisas, fez com que Enya refletisse e mudasse sua visão sobre a vida. Riam muito juntos.

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Eu adoro conversar contigo, Gabriel. Você não é nada previsível. Você é um anjo que aparece nos meus sonhos. Eu não quero mais acordar.
- Enya, quero te dizer algo. As pessoas podem optar por dois caminhos na vida. Ter uma companhia, uma pessoa em quem você possa confiar, ser amigo, ficar de mal, fazer as pazes, dividirem as contas, envelheceram juntos... Ou levar uma vida só, ter muitos e não ter ninguém, conversar só com o seu reflexo no espelho.
- Por que você está me dizendo isso?
- Quero que você pare e pense no que está fazendo, você está se distanciando do seu marido, vocês têm uma vida juntos, não siga por este caminho, saia desse mundo de sonhos. Será melhor para todos nós.
- Mas Gabriel, o que eu fiz de errado? Estou em busca da minha felicidade.
- Sua felicidade está na sua casa. Não estrague tudo. Eu não posso me apaixonar, estou carente, mas isso não pode acontecer, não entrarei mais em teus sonhos.
- Por favor, Gabriel, não faça isso comigo!

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Um vazio voltou a tomar conta do coração de Enya, vazio deixado por Gabriel. Já não sonhava mais, tudo o que via, quando dormia, era só uma escuridão. Gabriel estava sempre em seus pensamentos, ela levava consigo tudas as coisas que havia aprendido com ele e tentava entender tudo o que aconteceu. Porém não concordava com o que ele dissera sobre sua felicidade estar em casa. Como seria envelhecer ao lado de Noah? Quando seu corpo não tivesse mais vitalidade para o sexo, sobre o que conversaríam? Não há como ser feliz vivendo em um mundo totalmente oposto ao seu. Enya acreditava que Gabriel fosse um anjo, sim, o seu anjo da guarda, que apareceu em sua vida para ajudá-la a encontrar a felicidade

Prestes a completar 25 anos, Enya tomou uma decisão que mudaria para sempre a sua vida, abandonou tudo e foi em busca de seu verdadeiro amor. Acreditava que submeter-se a ficar com alguém apenas por medo de ficar só era burrice. Sabia que Noah ficaria bem, isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Ela foi em busca do seu Gabriel, seu anjo.

A vida é assim, vai entender, tentar descomplicar só complica!
Por Cíntia Duarte

Trilha sonora:


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